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O vazio que habita a escuridão

Naquele dia, acordei antes da madrugada ir embora, antes das estrelas dormirem. Pude lhes desejar boa noite pelas frestas da persiana antes da luz fria da manhã tomar o céu em seu esplendor amarelado. O primeiro raio de sol foi me um sinal para voltar para a cama.

Despertei novamente com a faminta luz do meio dia, forte, quente, queimando como se estivéssemos no deserto. Sedenta por almas frias. Nesse dia eu não seria uma dessas almas. Não diria “oi” ao sol, não veria o azul-claro do céu. Veria o branco do teto do meu quarto e sua colorida mudança acompanhando a luz do astro. Eu passaria o dia todo naquela, me lamentando. 

A próxima cor a cobrir minha parede era o alaranjado do fim da tarde. A luz bem fraca entrava pelas frestas da persiana, iluminando meu guarda-roupas. Eu havia ficado na cama o dia todo, observando as mudanças da luz do sol pelas frestas. Observando as cores quentes dançarem pelas minhas paredes, vivas. Enquanto eu, apenas um moribundo sedentário de cores frias deitado entre os lençóis.

As paredes brancas do quarto me sufocavam, os lençóis também brancos já não me confortavam. Eu não me sentia eu. Nem a luz do sol, que sempre me alegrava me convencia a sair de casa. E agora, com o fim do dia, com o fim daquela luz quente, algo começava dentro mim. O verdadeiro fim.

Eu podia sentir a parede branca tornando-se escura, ao mesmo tempo que eu me tornava escuro. Dentro de mim algo parecia morrer junto a luz do sol. Mas eu sabia que não renasceria no outro dia com o astro. Esse seria meu eterno fim. 

Me levantei da cama, já estava na hora de me mover. A cada passo sentia crescente o vazio em mim. Acendi a luz com muito cuidado, a claridade branca do meu quarto me incomodava.

Abri a porta, pintada de branco. Tão branca quanto o resto do quarto.

E o abismo negro que agora era o afora-meu-quarto me encarou com seus inexistentes olhos vazios. Escuridão, ou seja, falta de luz. Um vácuo negro infinito se expandindo. Pequenos pontos flutuavam naquela desolação, distantes demais para que eu pudesse tocá-los.

Aquilo não era o espaço sideral. Mas parecia.

Era toda a desolação da minha cabeça, todo o infinito vazio que crescia dentro de mim. E agora crescia para fora de mim. Meu quarto, como eu, um pequeno objeto flutuando em uma imensidão sem luz, assustadora. Irreal.

Toda aquela irrealidade, toda minha imaginação. A projeção da minha mente na vida real. Pela primeira vez as coisas que estavam acontecendo na vida real eram iguais às da minha cabeça. 

Dei o primeiro passo no vazio. Cai. 

Cai como nunca havia caído antes, com velocidade, ao nada. Despenquei. Sentindo meu corpo contra o vazio. Somente eu, caindo. Pude olhar para cima, ver meu quarto distante, um pequeno objeto branco no nada. Como todos aqueles outros pontos que me lembravam vagamente estrelas. Mas eu sabia que era frangalhos de momentos da minha mente. Sabia que eram pontos da minha memória, pontos de luz, lembranças. Todas perdidas e confusas naquele grande espaço vazio que era o resto de mim.

A distância entre nós, eu e todos esses destroços tão parecidos com estrelas. A distância entre quem eu era naquele quarto vendo a luz do sol e quem eu viria a ser naquele escuro vazio. Quem eu viria a ser no fim daquela queda. 

Quem eu viria ser sem nunca mais ver o sol.

Ergui o braço na tentativa de agarrar algum daqueles destroços da minha memória. Falhei. Meu quarto, aquela lembrança, era agora só mais um ponto na escuridão. Naquele lugar, naquele vazio, eu não veria mais a luz do sol. Eu não daria mais boa noite as estrelas.

Fechei os olhos, recolhi o braço. Me entreguei ao vazio. Me entreguei aquele eu. Me entreguei a quem eu viria ser depois daquela queda.

Abri os olhos assim que senti o baque em minhas costas, eu estava deitado no chão. A escuridão reinava no quarto, nem a luz da lua entrava pela persiana. Me desesperei.

O escuro do quarto não era como o meu escuro. Aquilo era real demais, e a realidade me assustava, por que ali eu era frágil. Eu era real.

No meu vazio eu me tornava intocável, dono da minha própria escuridão. Mas aquela real falta de luz não possuía dono. E qualquer coisa poderia habitar aquela escuridão. Qualquer coisa real. Qualquer medo real.

Em alguns segundos abri a porta do quarto para me deparar com o corredor vazio. A realidade. Percebi que o que acontecia na realidade jamais seria igual ao que acontecia na minha cabeça. Dei o primeiro passo no corredor, não cai. Por que já estava caído, já havia despencado. E a realidade era o fim da minha queda. Era o que me esperava no fundo do meu vazio.

Desejei que tudo ao meu redor despencasse, que eu pudesse viver sozinho, alheio na eterna devastação do abismo que era minha mente. Mas isso não iria acontecer, por que agora eu seria aquela pessoa que não poderia ver o sol. Porque eu havia me entregado ao vazio. Eu havia me tornado vazio. 

Eu havia feito uma escolha.