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A rotina que se quebra entre rotinas

Existe uma casa nas montanhas que vejo todos os dias no meu caminho para o trabalho. Tenho uma rotina comum, silenciosa. 

Acordo antes do sol, não escuto os sons da rua, me arrumo em silêncio e saio de casa sem falar uma palavra. Ando até o trem sentindo o frio da névoa matinal se enroscando entre as linhas de minhas roupas, se amarrando em minha pele e me fazendo gelar até o sangue. 

Quando pego o trem e me sento sozinho, apenas olhando pela janela, se é um dos dias de sorte que consigo um acento tão regal. Ninguém conversa com ninguém no trem, não nos conhecemos, não temos tempo ou motivo para nos conhecer.

E nesses dias que consigo sentar à janela, espero ansiosamente por ver aquele casarão antigo escondido entre as árvores e a mata violenta, jogado por volta da montanha que beira o rio. Sempre que o vejo, me pergunto, por que te abandonaram? Por que está tão só? Não está só.

Se a minha rotina é o silêncio aquela casa é o estrondo que quebra todas as janelas com o tocar de uma só nota.

Se minha vida é tão quieta como aquela casa consegue ser a tão sonora melodia que me faz dançar com os olhos todos os dias?

Me entristeço quando a casa desaparece pela janela, já que o trem não para de correr para que eu possa apreciar a beleza decaída daquela construção. Quando saio do trabalho e ando, novamente, até a estação de trem, já me enche o coração de uma batida quente do sangue que me percorre as veias. Eu vou ver a casa novamente.

Será seus tijolos tão vermelhos quanto meu sangue? Ou meu sangue tão vermelho quanto a argila seca que agora se agarra às fundações daquela casa decrepita em busca de voltar a ser algo que nunca foi?

Pois veja bem, sempre buscamos voltar a ser algo que nunca fomos. Tanto eu, tanto aquela casa e a montanha que te acompanha, tanto todas as vozes silenciosas que me acompanham naquele correr do trem.

Me deixo divagar enquanto acompanho a vista da janela que sempre muda. Ao sair do trabalho, nada é mais tão silencioso como era antes, apenas o silêncio diferente de se andar sozinho pelas ruas lotadas de pedestres. O prédio que está a ser construído continua a crescer. Não tão chamativo quanto aquela casa silenciosa. Porém me pergunto, será a terra usada para bater o chão daquele prédio que só cresce é a mesma terra usada na construção daquela casa abandonada?

E então me questiono o real motivo de me interessar tanto por uma construção tão esquecida e decrepita, já que enquanto a cidade cresce e muda ao meu redor, me continuo estático, assim como aquela casa. Estou pronto para ser abandonado.

Tudo que se constrói, destrói. Tudo que se nasce, morre.

Já que me acompanha nessa melodia tão abstrata pode-se ver o surrealismo de tal conversa. Como que se diz alguém se sentir pronto para ser abandonado? Abandonado de todos os laços que me fazem viver? Não.

Abandonado como só a palavra pode fazer sentido ao ver uma casa tão preciosa deixada para trás. Abandonado no sentimento que sinto quando vejo aquela construção e me pergunto sobre as teias de aranha que molduram cada janela iluminada daquela casa. E então me vejo como uma pequena aranha que talvez se deite no sol matinal de sua nova casa, cercada de seus compadres e amigas aranhas. Porque nada nunca se abandona ou se destrói. Porque nada nunca morre.

Quando o trem finalmente para na próxima estação que percebo o quão longe deixei minha mente caminhar. Talvez se tivesse contado os quilômetros que percorri perceberia que poderia ter andado apé até o trabalho.

Com o abre das portas entram-se novas vozes silenciosas, saem as antigas, e eu continuo a me sentar em silêncio. É a rotina que se quebra a própria rotina, é o que esquecer de se viver e não se lembrar dos passos que deu ao amanhecer.

Nunca foi, e nunca será, a casa velha, assombrada, abandonada. Sempre será a casa das aranhas que prosperam e esperam. Já que algum dia todo prédio se tornará uma nova casa, seja para seres humanos, seja para aranhas.